Projetos sociais sofrem com a falta de doações e de voluntários
Insuficiência de voluntários agrava o quadro das instituições
No Retiro dos Artistas,
moradores tomam sol.
Equipe tem dificuldade
para honrar as
despesas mensais
- Guilherme Leporace /
Agência O Globo
RIO — A crise financeira bate à porta, diariamente, de instituições e organizações que têm projetos sociais em andamento. Os espaços recebem cada vez menos voluntários, e as doações se tornam mais raras. Muitas vezes, quando o telefone toca, do outro lado está um colaborador avisando que vai reduzir ou até mesmo cessar as contribuições.
Com o atraso no repasse das verbas públicas e as vindas do setor privado e de pessoas físicas escasseando, cinco projetos da região visitados pelo GLOBO-Barra, todos em Jacarepaguá, correm o risco de terem suas atividades drasticamente reduzidas ou até paralisadas.
Recentemente, o Lar Maria de Lourdes, na Taquara, anunciou que poderia fechar as portas em decorrência do atraso na verba proveniente do estado. A instituição, que abriga portadores de deficiência física e mental, atualmente tem 11 crianças e 25 adultos. A continuidade do projeto, iniciado em 1998, tem sido possível graças ao apoio de pessoas físicas, que vem diminuindo, e da quantia recebida mensalmente do município, cerca de R$ 40 mil.
A situação se agravou em janeiro, mês em que o abrigo parou de receber do convênio com o estado, que prevê o repasse de R$ 60 mil mensais, oriundos da Fundação para a Infância e Adolescência (FIA) e da Secretaria estadual de Saúde. Com isso, houve atraso no pagamento dos 35 funcionários e as contas se acumularam, incluindo as de água e de luz — este último serviço chegou a ser temporariamente interrompido, um transtorno enorme num local onde vários assistidos usam aparelhos respiratórios.
Os gastos já haviam aumentado desde o ano passado, quando, por determinação do Ministério Público (MP), houve necessidade de separar os ambientes onde ficavam menores e maiores de 18 anos. Com isso, foi preciso ocupar uma segunda casa para continuar o atendimento. Um empresário cedeu o imóvel ao lar por dois anos. Metade do tempo já passou.
Sem querer “sofrer por antecipação”, Maria Isabel Peixoto, fundadora da casa, conta que recorre da decisão do MP.
— Tentei argumentar que as crianças são acamadas, não têm como maiores e menores atrapalharem uns aos outros. Mas não houve jeito. Estou com um processo e fui obrigada a abrir outra casa — diz a aposentada de 72 anos. — A mudança trouxe mais custos, e este ano ainda não recebi um tostão da Secretaria de Saúde, nossa maior verba.
Com dificuldades. Lar Maria de Lourdes abriga crianças e adultos portadores de deficiência física e mental; Caca é uma das residentes - Analice Paron
A equipe formada por funcionários e voluntários se mobiliza para arrecadar doações, seja para comprar uma lata de um leite especial, que pode custar R$ 70, seja para substituir equipamentos danificados (de liquidificador a cadeira de rodas) ou pagar exames médicos. A profissional de Educação Física Cristina Areno Jucá, voluntária no Maria de Lourdes desde 2002, realiza visitas semanais e se encarrega de divulgar nas redes sociais o que é mais urgente.
Caminhando por entre berços e camas, ao cumprimentar cada um dos assistidos Cristina recebe sorrisos em troca. Do grupo de 36 internos, apenas dois têm visitas da família. Eles só veem o mundo para além dos muros da casa nos passeios organizados pela equipe. Momentos em que se torna necessário ainda vencer preconceitos.
— São quatro passeios por ano, entre eles uma ida ao Praia para Todos (que proporciona contato com o mar e diferentes esportes a pessoas com necessidades especiais). Na casa, procuro promover eventos culturais, como apresentações de circo e música, para que eles (os internos) tenham uma percepção diferente. As pessoas dizem que eles não entendem o que estão vendo. Mas claro que entendem — diz Cristina. — Onde você vê um trabalho desses? A minha preocupação é não deixar o projeto morrer; senão, vai uma história de amor junto.
As portas abertas do Lar Maria de Lourdes são um convite para conhecer o trabalho da instituição sem necessidade de agendar dia e horário. A população pode ver de perto a rotina das duas casas, o que a equipe aponta como fundamental tanto para incentivar as contribuições — por menores que elas sejam — como para entender as necessidades do espaço. Um engano recorrente é a doação de alimentos que não podem fazer parte da dieta dos internos, como leite com alto teor de sódio. Para quem quiser ajudar, aí vai uma dica: no dia 10 de julho, o lar organizará uma festa junina.
Na próxima sexta-feira, o Projeto Semente é que promoverá uma festa para arrecadar fundos e conquistar novos voluntários. O grupo tem sofrido baixas até na equipe que atende os 20 portadores de deficiência mental que ampara, todos com mais de 18 anos. Muitos nem sabem ler o próprio nome, o que a equipe aponta como reflexo da falta de programas voltados exclusivamente para esse público, que carece ainda mais de ações voltadas para si ao deixar a escola.
O projeto criado há oito anos pela assistente social Célia dos Santos tem programação para os participantes pela manhã, de segunda a sexta-feira, envolvendo música e oficinas de jardinagem e artesanato.
Não conta com verba pública, sendo mantido apenas com ajuda de pessoas físicas.
No mês passado, o principal colaborador ficou desempregado, o que refletiu diretamente na quantia arrecadada. No almoço, as porções oferecidas sofreram redução, e elas não servem só para alimentar os assistidos. É uma forma de ajudá-los também a conquistar independência: ensinar-lhes a usar garfo e faca ou imprimir a força correta para segurar um copo plástico, sem derrubar o conteúdo,
são detalhes que ajudam a promover maior inclusão social, afirma Célia.
— A pessoa especial de até 18 anos tem uma lei que a ajuda, que a faz ser inserida numa escola. Depois, ela vai para casa e não há uma instituição na qual possa melhorar em alguns aspectos. Não existe estímulo. Nossos objetivos principais são a socialização e a independência. Apesar de serem adultos, muitos têm dificuldade até na hora da higiene pessoal. A pessoa especial é vista como alguém que precisa que façam tudo por ela, em vez de alguém a quem se pode ensinar coisas — observa.
No Projeto Semente, os assistidos aprendem
jardinagem, e as plantas cultivadas são vendidas
- Analice Paron / Agência O Globo
O Projeto Semente funciona num espaço cedido pelo Movimento de Amor ao Próximo (MAP), grupo de trabalho voluntário. A quantia arrecadada, por meio de doações e com a venda de peças de artesanato e plantas cultivadas no local, mantém a instituição, onde trabalham somente voluntários. Uma dificuldade a mais para garantir a presença de profissionais de áreas específicas, como fonoaudiólogos.
O planejamento semanal é organizado pela pedagoga Rita de Cássia Braga, voluntária desde 2010. Atividades educacionais que incluem o aperfeiçoamento de hábitos de higiene pessoal, como escovar os dentes e ir ao banheiro sem ajuda, estão no cronograma:
"— O que faço é orientá-los dentro da visão da socialização, extraindo, mesmo da atividade mais simples, um foco pedagógico. Ao fazer uma atividade de colagem, por exemplo, cada um aprende a trabalhar dentro do seu limite."
O projeto passou por dificuldades em outras épocas. Um dos momentos mais críticos foi quando Célia sofreu um AVC e precisou ficar afastada.
Os voluntários se uniram para evitar a interrupção das atividades. Entre eles está a bancária aposentada Amelia Navarro Carneiro Garcia, que leva seu trabalho a sério e frisa que não é preciso ter experiência na área educacional para notar a melhora gradativa da turma.
— Eles são muito carinhosos. É uma troca muito grande. Na hora da chamada, todo mundo espera o seu momento de responder “presente”. Mesmo quem tem mais dificuldade para falar se esforça ao máximo, e todos têm paciência para esperar. Vejo isso como uma aceitação, por parte deles, de que são um grupo. Nós ensinamos e aprendemos ao mesmo tempo — diz Amelia.
ORÇAMENTO REDUZIDO
A diminuição das doações atingiu a Agência do Bem, que já no ano passado sofreu um corte de 40% no orçamento. Na sede de sua Escola de Música e Cidadania, na Cidade de Deus, o trabalho tem trilha sonora vinda de duas salas no segundo andar. Os 125 alunos — entre 7 e 17 anos, excetuando-se os que integram a Orquestra e o Coral Nova Sinfonia, que podem ser maiores de idade — se dividem em turmas de violino,
violoncelo,
viola,
trompete,
trombone,
flauta doce
e
canto coral,
com
aulas semanais.
Há poucos meses, o pólo quase teve parte de suas atividades paralisada, com a saída de três dos seis professores.
— A dificuldade foi pagar aos professores com a formação que achamos adequada para a escola. Em comum a todas as turmas, oferecemos teoria musical e oficina criativa, uma espécie de aula de cidadania, em que são usados elementos da música para falar sobre temas que perpassam a vida. Trabalhamos muito com a educação — diz a coordenadora executiva da Agência do Bem, Patricia Azevedo. — Uma questão muito debatida é a violência.
No ano passado, o polo de Vargem Pequena, com 30 alunos, encerrou suas atividades devidos aos custos. Os alunos foram realocados no de Vargem Grande, mas havia questões não previstas pela administração, conta o presidente da Agência do Bem, Alan Maia:
— O projeto de música é o mais impactado. Temos nos reinventado para não diminuir o número de atendimentos, mas já perdemos aulas e alunos. Tentamos deslocar os participantes de Vargem Pequena e não deu certo, porque não tínhamos como oferecer ajuda de custo para a passagem, e faltava disponibilidade de parentes para levar os alunos até o outro polo.
A atividade atrai muitos jovens da Cidade sde Deus e
de comunidades vizinhas
- Guilherme Leporace / Agência O Globo
A maior parte da quantia arrecadada pela Agência do Bem vem de empresas privadas. Os contratos, em geral anuais, dão um mínimo de estabilidade aos projetos. A Nova Sinfonia é o trabalho de maior destaque e o que mais deve sofrer com a falta de renovação do contrato do principal apoiador, que significará um deficit de R$ 500 mil no segundo semestre. O grupo, com 42 componentes, tem apresentações fixas no último domingo do mês, no Teatro dos Grandes Atores, e toca também em outros espaços. Mas a restrição orçamentária poderá diminuir o número de ensaios e de espetáculos,
devido aos
custos de produção,
regência,
instrumentos,
transporte,
bolsa-auxílio,
figurinos
e
cenários.
A Escola de Música e Cidadania teve início em 2006, em Vargem Grande, visando à inclusão social de crianças e adolescentes por meio da arte. O polo da Cidade de Deus foi inaugurado em 2010. Hoje, reúne também alunos de lugares como Praça Seca, Anil, Taquara e Gardênia Azul. Ramon Calebe Sousa da Silva, de 17 anos, integra a orquestra há dois anos, tocando trompete. Chegou ao polo da Cidade de Deus no final de 2012, movido pela curiosidade em relação à música, logo transformada em paixão. No local, sua irmã, Sarah Camila, de 13 anos, tem aulas de violino.
"— Na minha igreja tinha um rapaz que tocava trompete, e acabei gostando. Meu tio também tocava, mas ele sofreu um acidente e não pôde mais se dedicar à música. Quero seguir carreira — conta Ramon."
No Retiro dos Artistas, no Pechincha, o alarme soa desde 2011, quando a instituição começou a perder doações. Este ano, o cenário se agravou, e a equipe espera dar uma reviravolta no roteiro. A instituição ainda não pagou o 13º salário de 2015 dos funcionários, sendo 15 deles da área de saúde, responsáveis pelo atendimento diário dos 52 residentes. Esta e outras contas seriam pagas com a venda de ingressos da tradicional festa junina do espaço, sua principal fonte de renda. O evento, que dura quatro dias, tem entre 15 mil e 16 mil pagantes por edição. Mas, na semana passada, apenas 3.800 pessoas o prestigiaram.
A administradora do Retiro, Cida Cabral, acredita que o mau tempo e os episódios de violência na região contribuíram para a baixa frequência. E suspeita que, nestes tempos de vacas magras, os R$ 20 da entrada também tenham desanimado alguns.
As doações vindas de pessoas físicas, que permitiam honrar a folha de pagamento até cinco anos atrás, estão em queda, e hoje cobrem somente 60% do orçamento de R$ 60 mil. Outros cortes, mais recentes, pesam na conta. Uma fábrica de leite que costumava doar mil litros por mês reduziu a entrega à metade, enquanto o consumo permanece o mesmo: são mais de 20 litros diários.
— Toda instituição vive numa corda bamba. Num mês em que tem uma coisa, falta outra. Não tem como dar conta de tudo — diz Cida. — O Retiro ainda sofre preconceito. As pessoas insistem em achar que a Rede Globo mantém a instituição. E o público pensa que só artistas deveriam ajudar. Hoje, 80% da arrecadação que nós temos vêm de pessoas comuns que admiram o trabalho de alguém que vive aqui.
Em seus 15 mil metros quadrados,
o Retiro tem
refeitório,
lavanderia,
cinema,
unidade de apoio com enfermagem
e
casas para quem tem condições de morar sozinho.
As áreas abertas ao público são uma fonte de arrecadação extra, como o teatro, que oferece cursos e espetáculos; o salão de beleza e o brechó. A instituição também serve de locação para produções de cinema e televisão. Cada residente, hoje, consome cerca de R$ 5 mil mensais. As doações de alimentos e produtos aliviam o orçamento, que já começa o mês negativo.
NOVAS IDÉIAS
A próxima mudança no enredo do Retiro dos Artistas é tornar regular a programação do seu teatro, o Iracema de Alencar, com 282 lugares. A proposta é repetir o sucesso do brechó, espaço sob os cuidados da voluntária Sônia Maria Escobar Fontes desde 2002. A aposentada frequentava eventos na casa e viu a possibilidade de aumentar a sua verba ocupando um espaço vazio para vender o excedente de roupas, calçados, acessórios e até mobílias que chegava. As doações são retiradas em diversas áreas da cidade por um carro do próprio Retiro, e devem estar em bom estado.
— Como os residentes têm as casas arrumadas, o excedente ajuda na compra de remédios ou no pagamento de exames. Tudo o que temos aqui é de doação. O pouco se torna muito.
"Criei um grupo de parceiros na região e ligo para avisar o que chegou. As pessoas sabem a finalidade desse dinheiro — diz Sônia, que está no local de segunda a sábado, das 11h às 18h."
Num cenário adverso, o exercício de atrair pessoas para serem voluntárias ou doadoras precisa ser constante. É o que acontece na Associação Solidários Amigos de Betânia, casa na Freguesia que atende 60 homens, ex-moradores de rua, e está operando com sua capacidade máxima.
O painel na Associação Solidários Amigos de Betânia
mostra as fases do programa de acolhimento
- Guilherme Leporace / Agência O Globo
O atual diretor-geral da Associação Solidários Amigos de Betânia (Asab), Nelson Lopes Teixeira, chegou à instituição em 2006 para levar o programa de 12 passos dos Alcoólicos Anônimos (AA), visando à recuperação dos internos que sofriam com o problema. Criou outros projetos e iniciou atividades esportivas. Agora, os planos são de ampliação do atendimento. Mas falta verba.
— Queremos fazer uma quadra poliesportiva e aumentar a capacidade de acolhimento, construindo novos dormitórios e banheiros — conta Teixeira. — Gastamos muito com medicação. A maioria dos homens chega debilitada, com patologias de ordem neurológica e outras, como tuberculose.
A verba vinda do município é exclusiva para pagar os 30 funcionários, entre eles assistentes sociais, psicólogos e educadores. Os homens são encaminhados pela prefeitura e têm entre 18 e 59 anos. Cada interno custa à instituição R$ 2.600 mensais. A principal preocupação é com a comida. Faltam tanto alimentos não perecíveis como proteínas para as cinco refeições diárias. O programa de recuperação dura nove meses, e está dividido em cinco fases, durante as quais o interno é gradativamente reinserido na sociedade, por meio de atividades realizadas fora da instituição.
— Quando não estão na terapia, eles trabalham nos serviços gerais, na cozinha, na lavanderia, na portaria, na reciclagem. Nós os treinamos para realizarem funções fora daqui, e eles se sentem acolhidos e respeitados — conta a irmã Maria Elci Zerma, que fundou a instituição em 1999, no Alto da Boa Vista.
A Asab chegou à Freguesia em 2000, mudando-se para o endereço atual cinco anos depois. Desde 2004, também é mantida uma casa em Santíssimo, hoje com 40 acolhidos. O projeto tem, atualmente, sucesso na recuperação em 60% dos casos. Sérgio Fabião, um dos internos na quarta etapa do programa, resume o trabalho:
— Aqui, em cada fase nós temos tarefas diferentes, sempre com trocas de experiências. Temos a nossa recuperação, aprendemos cursos que nos habilitam para o mercado de trabalho, cuidamos da saúde. Ficamos prontos para voltar à sociedade da melhor maneira. Por isso, no final do painel (instalado no interior da casa), há uma estrela que vai para o mundo.
fonte: oglobo.globo
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